domingo, 13 de outubro de 2013

Do outro lado do balcão


Depois de trabalhar por alguns anos como preparador e revisor de textos, surgiu-me a oportunidade de mudar de lado do balcão e trabalhar como produtor editorial. Isso quer dizer que, entre outras atribuições, cabe a mim avaliar e validar as intervenções feitas por preparadores e revisores em textos de terceiros (autores e tradutores). Qual não foi minha surpresa ao descobrir que havia uma espécie de consenso tácito que atestava uma tendência à vulgarização, à substituição do termo preciso pelo vago, do erudito pelo raso, da frase torneada pela ordem direta mais vulgar. Isso quer dizer que preparadores e revisores estavam interferindo em todos os planos do texto: sintático, lexical e prosódico/fonético.
Na editora em que trabalho, temos, sim, um manual de padronização, mas não um Manual de Padronização e Estilo. Não sugerimos que expressões, palavras ou construções frasais sejam censuradas de antemão, sempre e arbitrariamente, como que por ordem dos deuses. E isso me leva, novamente, à minha birra com os chamados comandos paragramaticais, na expressão do Marcos Bagno (com quem tenho lá minhas discordâncias). Quanto a este assunto, acho mesmo que está certo o que diz o Professor Olavo de Carvalho, em ensaio memorável sobre a arte de escrever. Manuais de redação e estilo são mesmo verdadeiros manuais da falta de estilo:


Que [os profissionais da imprensa] baixem regras, vá lá. Mas deveriam ter ao menos o bom senso de admitir que especificações ditadas pela mera conveniência tecno-industrial não têm nenhum valor de critério estético, não constituem, em nenhum sentido, as regras de estilo, a não ser que se entenda por estilo a uniformidade coletiva, isto é, a falta de estilo. Servem para medir a adequação de um texto ao perfil mercadológico de um determinado produto editorial, e não para julgar sua qualidade literária, sua expressividade, sua exatidão, sua coerência, elegância e veracidade. Não servem nem mesmo para aquilatar do seu valor jornalístico, se tomado em sentido geral e fora dos cânones daquela publicação em particular. Como julgar por elas, digamos, o jornalismo de um Mauriac, de um Ortega y Gasset, de um Alain, ou, mais próximo de nós, de um Monteiro Lobato? Estilo é a adequação da linguagem de um sujeito às suas próprias necessidades expressivas, ou às exigências do assunto, e não a qualquer molde externo prévio, seja ele folgado ou estreito. É só metaforicamente, e forçando a barra, que a palavra "estilo" pode designar o sistema uniforme de trejeitos verbais imitado por todo um corpo de redatores; mais propriamente, esse sistema seria dito uma padronização da falta de estilo.
Às voltas com essas ideias, foi com grande surpresa, consternação e felicidade (sim, porque, afinal de contas, descobri que não estou ficando maluco) que li o comentário da tradutora Ivone Benedetti, a respeito de intervenções feitas em traduções dela. Não poderia concordar com mais entusiasmo. Talvez devesse fazer alguma ressalva, para não ser injusto com os bons profissionais. Mas estes, justamente por serem bons, já saberão de antemão que não são o objeto da crítica aqui presente. Diz Ivone:

Está havendo por parte dos preparadores de textos, já imbuídos da demonização da norma culta, um tenaz esforço de nivelar por baixo, de facilitar o texto para um leitor que eles subliminarmente veem como deficiente mental. A coisa é feita no pior estilo "rede globo" de didatismo rasteiro. As construções sintáticas menos usuais não são entendidas. Eles as substituem por coisas que acabam tendo outro significado. Algumas palavras são "cassadas". Recentemente, num texto meu, "otário" foi substituído por "panaca" (!), qualificativo este que nunca vai sair do meu teclado (antes era pluma) nem era o sentido do texto original; "denodado" foi substituído por "corajoso" (logo depois do verbo desencorajar); "abstruso" foi substituído por "obscuro" (como se fossem perfeitos sinônimos); "espocar" não pode, tem de ser "estourar"; "jaez" não pode: o revisor tascou "característica", como se fosse sinônimo, ou seja, algo "desse jaez" virou algo "dessa característica"; "medrar", que talvez possa ter certo odor duvidoso, está proscrito, substituído por "difundir", que não é o que medrar quer dizer, mas só quer, porque não diz; "mansuetude" não pode: tem de ser "mansidão", nem que seja de Jesus. E não adianta passar horas pesquisando até concluir que o jogo a que o autor se refere é o bilhar (francês), porque o tal preparador decidiu que tudo é sinuca. Lamento, Paulo, mas nem nesse solo há húmus. O esforço é, sim, no sentido do empobrecimento. O grande desserviço prestado nos últimos anos pelos neolinguistas foi o de levar a crer que a língua só serve à comunicação – entenda-se: cotidiana –, esquecendo-se de que ela é (entre outras coisas) um repositório cultural. E os tais preparadores não descobriram ainda que quem se dá o trabalho de ler não está buscando o meio mais fácil de passar o tempo, e sim de entrar no intrincado universo do "pensamento" através do melhor instrumento inventado até agora para traduzi-lo: a língua, de preferência a escrita.
Os exemplos dados são muito bons. Mas eu já peguei casos mais esdrúxulos. Por exemplo, "infirmar", substituído sistematicamente por "confirmar", seu exato oposto; ou numa sofisticada exposição filosófica, o preparador inventou de substituir repetições de certos termos por pretensos sinônimos (perdendo-se toda a precisão do caso em pauta). Mas me alongo.
Termino, mais uma vez, recomendando vivamente a leitura dos poucos manuais de estilo que merecem ser lidos. De fato, posso ignorar outros igualmente bons; mas estes são indispensáveis:

  1. Olavo de Carvalho, A Dialética Simbólica. São Paulo, É Realizações, 2007. (Sobretudo os ensaios Aprendendo a escrever, A arte de escrever: lição número 1, esqueça o manual de redação e Ainda a arte de escrever)
  2. Othon Moacyr Garcia, Comunicação em Prosa Moderna. São Paulo, FGV, 2010. (várias edições anteriores)
  3. Gladstone Chaves de Melo, Ensaio de Estilística da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Livraria Editora Padrão, 1976. (Esgotado, só se encontra em sebos. Mesmo se for caro, vale o quanto custa!)
  4. Antonio Albalat, A Arte de Escrever em 20 lições
  5. Idem, A Formação do Estilo pela Assimilação dos Autores. (Idem – são livros velhos e preciosos. Affonso Romano de Santana disse que foram estes livros do Albalat que fizeram dele um escritor!)
  6. Francine Prose, Para Ler como um Escritor. Trad. Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro, Zahar, 2008.
  7. Rodrigues Lapa, Estilística da Língua Portuguesa. São Paulo, Martins Editora, 1998.
  8. Nilce Sant'anna Martins, Introdução à Estilística: A Expressividade na Língua Portuguesa. São Paulo, Edusp, 2008.
  9. José Oiticica, Manual de Estilo. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1940. (Livro velho, datado, mas, nem por isso, menos relevante. Importante, sobretudo, para chamar a atenção para a evolução da língua. Coisas outrora condenáveis que hoje já são legítimas, estrangeirismos que hoje já estão plenamente incorporados à língua, essas coisas) 
E, se têm de resolver problemas práticos, consultem estas obras, que, ainda que bastante incisivas em suas respostas, não prescindem, de maneira alguma, da reflexão e do juízo do consulente:
  1. Napoleão Mendes de Almeida, Dicionário de Questões Vernáculas. São Paulo, Editora Ática, 2003. (Livro datado em muitos aspectos; arbitrário em outros; divertido, em muitos; mas não é desprezível!)
  2. Domingos Paschoal Cegalla, Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Lexikon, 2009.

Antes de meter o bedelho (e uma ajuda inesperada)



Dada a repercussão dos dois últimos posts (aqui e aqui), nos quais abordo o cuidado com o texto alheio, julguei que valeria a pena dar continuidade a esta série, a fim de apresentar ferramentas úteis tanto a iniciantes quanto a iniciados na lide do processo editorial. Desejo, sinceramente, que (1) iniciantes encontrem aqui de maneira mais ou menos organizada informações que tive muito trabalho para reunir e sistematizar quando em início de carreira; e (2) que iniciados encontrem dados que, de alguma maneira, aperfeiçoem seu trabalho. Como tenho bem poucos amigos preparadores e revisores de texto, muito do que se verá nesta série é de fato idiossincrático, pautado apenas pela minha experiência pessoal. 

E, já que estou falando de minha experiência pessoal, menciono aqui uma obra cuja leitura foi decisiva não apenas para a formação da minha visão de mundo, mas, e surpreendentemente, para minha formação profissional. Refiro-me ao clássico Como Ler Livros, de Mortimer J. Adler. Para falar a verdade, li-o pela primeira vez na edição anterior, ainda sob o título A Arte de Ler. Certamente, este livro é muito mais do que um manual de técnicas de leitura – há toda uma concepção de educação subjacente a ele. Mas, como o meu assunto aqui é a utilidade do livro para o trabalho dos preparadores e revisores de texto, limito-me a mencionar os aspectos mais decisivos.

Adler fala de quatro diferentes níveis de leitura – leitura elementar, leitura inspecional, leitura analítica e, por fim, leitura sintópica. A leitura elementar, de maneira bem grosseira, é aquele nível de leitura suficiente para que se considere uma pessoa alfabetizada. É elementar porque ainda restrita à mera decodificação de sinais gráficos, seguido de sua respectiva conversão em sons, sem que necessariamente se chegue às ideias propriamente ditas. O segundo e o terceiro níveis de leitura são os mais decisivos para o trabalho do revisor, e vou tratar de pontos específicos adiante. A leitura sintópica é aquele tipo de leitura em que nos esforçamos sobretudo para relacionar ideias afins de livros ou autores diferentes. 

Ainda que as sugestões apresentadas na seção dedicada à leitura analítica sejam preciosas, para o trabalho do revisor a parte mais decisiva, segundo penso, é a dedicada à leitura inspecional. Explico: uma vez que o preparador/revisor tende a ler obras pelas quais pouco se interessa; uma vez que tem de ler obras por dever de ofício; uma vez que o poder de seleção das obras a serem lidas é bastante limitado, é absolutamente imprescindível que o revisor seja um hábil leitor inspecional. Entre os preceitos apresentados por Adler, encontram-se: 

  1. Examine a folha de rosto e o prefácio;
  2. Examine o sumário;
  3. Consulte o índice remissivo;
  4. Leia a contracapa e a sobrecapa;
  5. Examine os capítulos que lhe pareçam centrais ao argumento do autor;
  6. Folheie o livro, detendo-se pontualmente em alguns parágrafos ou lendo algumas páginas em sequência.

Adler desenvolve cada uma destes pontos no livro, mas o importante é tomar ciência de que, para ele, essa etapa que antecede a leitura propriamente dita ajuda a colocar a mente na disposição correta. Diz ele que, quando “acaba de folhear o livro sistematicamente (...), você já sabe um bocado a respeito do livro, sem ter gasto com ele mais do que uns minutos, no máximo uma hora”. Ditos dessa forma, os conselhos parecem uma grande obviedade. Todavia, a minha experiência tem evidenciado que muitos revisores de texto simplesmente sentam-se para revisar um livro e seguem num fluxo contínuo e ininterrupto sem parar sequer para familiarizar-se com o universo referencial do autor. 

Vamos para a aplicação. Dada a diversidade de gêneros textuais, de escolas de pensamento, de peculiaridades de época, de autor, de tradutor, etc., etc., etc., é absolutamente impossível que o revisor já domine de antemão todas as convenções do gênero, todo o vocabulário específico de certo autor, etc. Portanto, a melhor maneira de avaliar quanto trabalho aquela revisão lhe custará é, justamente, fazer esta leitura inspecional. 

Evidentemente, não basta folhear o livro. É igualmente importante fazer as perguntas certas, que ajudarão a fazer o levantamento não só dos recursos necessários para determinado trabalho (obras de referência, por exemplo), mas também do tipo de intervenção que o texto requer. É tão comum editores de autoajuda queixarem-se de vocabulário demasiado erudito quanto editores de filosofia queixarem-se da vulgarização sistemática (lexical ou sintática) feita por revisores. 

Partindo dessa proposta de Adler, elenco a seguir uma série de perguntas importantes que devem ser respondidas antes de começar o trabalho de intervenção no texto:

Gênero textual 

A que gênero pertence este texto? Conheço as convenções do gênero? (Teatro: nomes das personagens, distinção entre rubrica e texto; Romance: formas de marcação de diálogo, noções de discurso direto, discurso indireto, indireto livre; Ensaios, diálogos filosóficos, biografia, história?) 

Campo do saber

Tenho alguma familiaridade com este campo do saber? Trata-se de registro baixo ou elevado? 

Importância do autor

Quem é este autor? Há outras obras dele já publicadas em português? Qual é a especialidade dele? Domino suficientemente seu quadro de referências? Em que período a obra foi escrita? 

Vocabulário

Há termos técnicos específicos cunhados pelo autor? Há um vocabulário já estabelecido em língua portuguesa? 

Relações do autor

Com quem este autor dialoga? Quais são os autores mais conhecidos que pertencem a seu quadro de referências? A que escola (literária, filosófica) este autor pertence?

História da língua

Em que período a obra foi escrita? Quais são os autores brasileiros da mesma época? O tradutor teve a preocupação de mimetizar o estilo do original? Há expressões que parecem datadas, mas que conferem o sabor de época ao texto? 

Tradutor

Quem é este tradutor? Ele já tem outras traduções publicadas? É experiente ou é iniciante? É rigoroso? Já tem credibilidade pública ou na editora? É acessível para esclarecer dúvidas?

Não, fazer essas perguntas todas não é excessivo de maneira alguma. Se pensarmos bem, já fazemos algumas delas de maneira mais ou menos intuitiva. Como disse no início, o objetivo é sistematizar um conhecimento mais ou menos esparso. Garanto para vocês, a maior parte dessas perguntas pode ser respondida, justamente, com a leitura inspecional proposta por Adler. As que não puderem ser respondidas assim serão facilmente respondidas com uma ou duas “googladas” (nesta série, ainda pretendo falar de alguns recursos ótimos da internet).

Suponha que você tem de revisar a tradução de um romance escrito no século XVIII; suponha também que o tradutor tenha sido cuidadoso o bastante para pesquisar as formas de tratamento vigentes na época e que tenha tentado reproduzir estes usos em sua tradução; suponha ainda que o tradutor mimetiza as construções sintáticas comuns nos textos brasileiros do mesmo período. Muito bem, o que você terá de fazer? Em primeiro lugar, fazer um levantamento bibliográfico de apoio. Mais uma vez, isso é relativamente simples. Um tratado de história da literatura, por exemplo, será de grande valia. Penso, por exemplo, na História Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi, ou em A Literatura Brasileira Através dos Textos, de Massaud Moisés. Você não precisa saber tudo; basta saber procurar. Depois de saber certas características da língua da época, convém, também, conhecer alguns dicionários que registrem acepções perdidas de certos termos. Eu, por exemplo, vez por outra me pego consultando o dicionário de Raphael Bluteau, para certificar-me de que determinado termo não está tão equivocado quanto minha cabeça contemporânea me fez pensar, mas, ao contrário, tem lastro na língua portuguesa. Se tiver à mão outros livros do mesmo autor ou de algum contemporâneo, isso já pode ser de alguma valia também.

E se o texto a ser revisado for um tratado geral de marketing? Bem, neste caso, acho que o Bosi não vai ajudar muito. Quem poderá ajudar, então? Cabe a você descobrir as principais obras de referência daquela área.

Você está sugerindo que eu compre um monte de livros, só para trabalhar? Sim e não. De fato, acho mesmo que um profissional do texto precisa ter uma biblioteca pessoal diversificada e com boas obras de referência. Mas há muitos recursos disponíveis na internet – o Google Books e o preview da Amazon são ferramentas a que recorro inúmeras vezes, todos os dias. Há muita coisa disponível também no Scribd.

***

Para encerrar, porque já me alonguei demais:
O mais importante, ao fazer essa leitura inspecional, ao procurar responder a essas perguntas, ao fazer o levantamento dos recursos auxiliares, é você saber que a qualidade do seu trabalho será muito melhor do que se fizesse as coisas aleatoriamente contando apenas com a própria intuição. Se o resultado de seu trabalho for melhor, as editoras para as quais você presta serviço ficarão felizes e continuarão a enviar trabalho. O editor, por sua vez, ficará feliz, por não ter de perder um tempo precioso desfazendo marcações indevidas feitas por revisores e preparadores (e, sim, eles fazem isso!). O editor não perde tempo e não corre o risco de, por cansaço, pressão ou qualquer outro motivo, deixar que o texto seja corrompido porque o revisor foi leviano e ele, desatento. Por fim, o leitor ficará feliz, por não ter de interromper a leitura a cada página por causa de erros e incoerências de critério. O preparador/revisor ficará feliz, o editor ficará feliz e o leitor ficará feliz.

Sendo esta a perspectiva, vale ou não a pena tentar?

As virtudes do profissional do texto


Desde que ingressei na carreira de revisor de textos, fiz alguns cursos, li diversos livros cujo assunto era o mercado editorial e acumulei alguma experiência. Ainda assim, só muito recentemente encontrei um livro que abordava um assunto esquecido, quase antiquado. Valery Larbaud, em seu Sob a Invocação de São Jerônimo,[1] fala a respeito das virtudes do tradutor (muitas das quais se aplicam igualmente a preparadores e revisores de textos). Para que fique claro a que me refiro quando falo de virtude, cito o filósofo Mortimer Adler, numa passagem em que ele expõe a noção aristotélica de virtude:

Segundo Aristóteles, a virtude moral é o hábito de fazer as escolhas certas. Fazer uma ou duas escolhas certas dentre muitas escolhas erradas não basta. Se as escolhas erradas são em número muito maior do que as escolhas certas, você persistirá na direção errada – irá para longe da felicidade, não para perto dela. É por isso que Aristóteles enfatiza a ideia de hábito.

Você sabe como os hábitos se criam. Para criar o hábito de ser pontual nos seus compromissos, você tem de tentar ser pontual repetidas vezes. Gradualmente se cria o hábito da pontualidade. Uma vez criado, você tem uma disposição firme e forte de ser pontual ao chegar onde prometeu chegar. Quanto mais forte o hábito, mais fácil agir daquele jeito, e mais difícil perdê-lo ou agir de maneira oposta.

Quando você cria um hábito e ele está bem desenvolvido, sente prazer em fazer aquilo que tem o hábito de fazer porque o faz com facilidade – quase sem esforço. Você sente que é doloroso agir de modo contrário aos seus hábitos.

Aquilo que acabo de dizer vale para os bons e para os maus hábitos. Se você criou o hábito de dormir demais, é fácil e agradável desligar o despertador e continuar dormindo. É difícil e doloroso acordar na hora. Por isso, se você criou o hábito de se permitir entregar-se a certos prazeres ou de evitar certas dores, é difícil abandoná-lo.[2]

Julgo necessário evocar essa ideia de virtude porque ela, pelo que me consta, está praticamente ausente do imaginário dos aspirantes ao trabalho com textos – tradutores, preparadores, revisores... Tem-se em mente que é necessário estudar língua, dominar certos recursos de informática, organizar-se como categoria profissional, etc. No entanto, para além de tudo isso, há uma espécie de predisposição ao ofício que antecede a toda essa formação, digamos, técnica do profissional. O conjunto de virtudes que listarei adiante é o que, parece-me, constitui essa predisposição.

Parto de minha experiência pessoal e das leituras que fiz e estou bem ciente de que há uma boa dose de subjetivismo e generalização. Seja como for, se o que tenho a dizer suscitar alguma autocrítica em profissionais experientes ou contribuir para a formação de aspirantes e iniciantes, já me darei por satisfeito.

Para o propósito que tenho em mente, não é necessário distinguir com precisão as atribuições de um preparador e de um revisor de textos. Mantenho o termo revisor simplesmente porque estas considerações foram suscitadas pela avaliação do trabalho de um revisor. O que vem a seguir, no entanto, se dirige igualmente a preparadores e revisores.

1. O revisor humilde (humildade x orgulho)

Já vi o revisor ser comparado a um goleiro – execrado quando falha, esquecido quando brilha. Não considero a metáfora válida. Para mim, o revisor de textos se aproxima mais da figura de um contrarregra – alguém cujo trabalho é garantir, com a máxima discrição possível, sem fazer-se notar, que tudo funcionará bem para que o outro brilhe.

Aliás, um contrarregra que, por alguma razão, se julgue digno dos holofotes está fugindo à sua função. Pode até ser que tenha seu talento e o exiba noutras oportunidades; mas, enquanto estiver como contrarregra, ele é contrarregra. O mesmo vale para o revisor. O pressuposto básico, fundamental, da atividade de revisão é que se revisam textos alheios. Isso implica que o revisor:
  1. Renuncia seu próprio estilo, suas preferências, seu gosto pessoal. Se as escolhas do autor/tradutor estão corretas, coerentes, aplicadas sistematicamente, adequadas ao tom do texto, não cabe ao preparador/revisor modificá-las. Neste quesito se encontram boa parte das substituições de seis por meia dúzia que tanto incomodam tradutores e editores.
  2. Presume que o tradutor é alguém suficientemente qualificado para fazer o serviço de tradução. Se esta presunção vai se sustentar ao longo do trabalho é outra história. Em geral, é aconselhável que o profissional parta desta presunção e procure imaginar por que o tradutor fez determinadas escolhas. O revisor é um humilde zelador do texto alheio e só deve interferir quando for capaz de justificar, de modo plausível, cada uma de suas intervenções.
  3. Intervém no texto criteriosamente. Na minha segunda semana de trabalho como revisor, fiz alterações no texto de um dos diretores de uma grande empresa. Este deu um chilique, perguntando quem tinha mexido no texto dele. Muito cautelosamente, mas com firmeza, tive de explicar a razão de cada uma das intervenções que fiz. Certamente, quem mais saiu ganhando dessa experiência fui eu. Daí saí com o preceito: Não intervir arbitrariamente, mas criteriosamente.

A humildade faz o revisor/preparador reconhecer que o texto não é seu.

2. O revisor diligente (diligência x negligência)

Se há um vício mortal ao revisor de textos, este é a negligência, a displicência, a suposição de que ninguém vai conferir a qualidade do trabalho. Ainda que demore, em algum momento os problemas virão à tona, e o profissional ficará marcado. Por exemplo: todos os profissionais que trabalham para editoras recebem um manual de padronização e estilo. O manual não pretende ser exaustivo nem uma camisa de força; mas contém critérios convencionais que DEVEM ser aplicados. Se o manual diz que o número da remissão à nota de rodapé deve ficar depois do sinal de pontuação, não há nada que justifique que este apareça antes! Se o manual prescreve que depois do título de um livro citado em referência vem ponto final, não há razão para que conste vírgula. E assim por diante. Muito curiosamente, a revisão de prova acaba tendo de corrigir problemas de padronização porque o preparador deixou a desejar! Isso tem nome: negligência! São exemplos de negligência também erros de ortografia gritantes (que até o revisor do Word pode pegar), dúvidas que podem ser resolvidas com uma simples consulta ao Google, etc.

O revisor diligente confere tudo, consulta tudo, tira dúvidas, relê...

A diligência faz o revisor/preparador seguir com atenção as instruções recebidas e não se furtar à pesquisa para esclarecer suas dúvidas.

3. O revisor prudente (prudência x temeridade)

A partir daqui, as virtudes passam a aproximar-se umas das outras. Já dissemos que orevisor humilde tenta inferir os critérios do autor/tradutor e que o revisor diligentepesquisa, consulta, tira dúvidas. Pois bem, diremos agora que o revisor prudente não intervém quando têm dúvida, não repadroniza injustificadamente, não mexe no texto à revelia daquele que assina o texto ou de seu editor. Se, num romance, o tradutor optou por manter as marcações de diálogo com aspas, mantenham-se; se optou por usar travessões, conservem-se (salvo, claro, orientação contrária). Se, num texto ensaístico, o tradutor optou por usar as segundas pessoas, que assim seja; se ocorrem termos pouco usuais, um vocabulário rebuscado, por que vulgarizá-los? Vejam: escolher um vocabulário rebuscado ou simplório envolve uma decisão editorial que foge ao escopo do preparador/revisor.

A prudência faz o preparador/revisor pesquisar, perguntar, esclarecer e somente então interferir.

4. O revisor seguro (segurança x insegurança)


Nada do que foi dito até aqui tem como objetivo tolher a liberdade do preparador/revisor. O que se espera é que os profissionais sejam seguros do que fazem. Repetidas vezes, preparadores deixam comentários e revisores de prova fazem marcações a lápis com perguntas que poderiam facilmente ser resolvidas (com um pouquinho mais de diligência). Estar seguro de si e de seu trabalho significa apenas que se fez o trabalho com diligência e que se é capaz de justificar as decisões tomadas.

A segurança faz o preparador/revisor julgar criticamente suas justificativas e apresentá-las de modo plausível, caso lhe sejam exigidas.

5. O revisor responsável (responsabilidade x irresponsabilidade)


Espera-se que profissionais responsáveis assumam as consequências de seus atos, para o bem e para o mal. Caso algum padrão não tenha sido aplicado, o colaborador deve estar disposto a refazer imediatamente o que fez de modo incompleto ou equivocado; caso se comprometa a entregar o trabalho em determinado prazo, espera-se que o cumpra ou, ao menos, avise à editora com alguma antecedência que não conseguirá cumpri-lo. Sumir é atitude irresponsável. Não responder e-mails é atitude irresponsável. Não atender o telefone é atitude irresponsável.

Não cabe aqui tratar deste assunto, mas abordo-o apenas de passagem: em geral, o profissional já sabe quanto vai receber por determinado trabalho no momento em que o aceita. Alegar que fez o trabalho proporcionalmente ao valor recebido não é apenas irresponsabilidade: é ser desonesto! Se aceitou fazer o trabalho, que o faça com profissionalismo e responsabilidade!

A responsabilidade faz o preparador/revisor cumprir os prazos e as exigências daquele que contratou os seus serviços.

6. O revisor solícito (solicitude x hostilidade)


É imprescindível que um freelancer saiba que é um prestador de serviços, e a editora é um CLIENTE! E, como cliente, tem o direito de exigir que o trabalho seja feito de acordo com o que foi combinado e, caso seja necessário um retrabalho, o profissional, se é profissional de fato, há de fazê-lo de bom grado, visando a satisfazer seu cliente e a garantir que este continue a contar com seus trabalhos.

A solicitude faz o preparador/revisor receber de bom grado um feedback relativo ao seu trabalho mesmo quando este é negativo.

***
Perceberam como nada do que foi mencionado aqui diz respeito à competência técnica do profissional? Concordam que as características mencionadas aqui independem de sua formação acadêmica? Ficou claro que há uma espécie de atitude de espírito a ser adquirida perante o trabalho com textos? Espero que sim. Espero também que humildade, diligência, prudência, segurança, responsabilidade e solicitude façam de nós profissionais melhores. A começar em mim.


[1] Valery Larbaud, Sob a Invocação de São Jerônimo: Ensaios sobre a Arte e Técnicas de Tradução. Trad. Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo, Editora Mandarim, 2001.
[2] Mortimer J. Adler, Aristóteles para Todos. Trad. Pedro Sette-Câmara. São Paulo, Editora É, 2010, p. 108-09. (Coleção Educação Clássica)

Sobre o ofício do tradutor


Traduzir não é fácil. Quem diz isso não sou eu, mas um dos mais experientes tradutores brasileiros: Paulo Henriques de Britto (tradutor de Dickens, Ian McEwan, Henry James, Philip Roth, Swift, Faulkner, etc.). Portanto, a fim de desfazer a ideia equivocada de que basta saber uma segunda língua e ter algum tempo livre para se tornar um tradutor, recomendo, inicialmente, a leitura de três livros relativos ao ofício:

1. Paulo Henriques Britto, A Tradução Literária. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2012. (obra da qual tirei a citação que abre este texto)

2. Paulo Rónai, Escola de Tradutores. Rio de Janeiro, José Olympio, 2012. (edições anteriores da Nova Fronteira)

3. Paulo Rónai, A Tradução Vivida. Rio de Janeiro, José Olympio, 2012. (edições anteriores da Nova Fronteira)

Esses três livros são de caráter introdutório e têm como principal virtude o fato de terem sido escritos por tradutores de verdade, não meros teóricos. Praticamente tudo o que dizem está enraizado em sua experiência e em sua erudição. Os livros do Rónai impressionam pela leveza, pela fluidez da linguagem, pela clareza da exposição, sobretudo quando se leva em conta o fato de o autor ser um húngaro que aprendeu português já depois de adulto. São verdadeiros clássicos dos estudos de tradução em língua portuguesa, pioneiros neste campo de estudos no Brasil. O livro do Paulo Henriques de Britto acabou de ser lançado, o que significa já ser uma obra da maturidade, em que se somam suas experiências de escritor, poeta, tradutor e professor de teoria da tradução. Esses livros já são suficientes para desfazer a ideia de que basta conhecer outra língua para se pôr a traduzir.

Além destes, para que cada etapa do processo tradutório seja feito de modo consciente, é igualmente recomendável a leitura de:

4. Brenno Silveira, A Arte de Traduzir. São Paulo, Unesp/Melhoramentos, 2004.

Este livro pode ser considerado um verdadeiro manual preventivo de problemas.Phrasal verbs, falsos cognatos, expressões idiomáticas, tudo isso é abordado de modo a chamar a atenção para o que requer atenção!

Se, por acaso, você tomar gosto pela discussão mais teórica, vale a pena ler:

5. Umberto Eco, Quase a Mesma Coisa. Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 2007.

Umberto Eco é semioticista (que não deixa de ser uma espécie de linguista), tradutor e autor traduzido. E todas essas perspectivas se mostram nessa obra.

***

Para além de conhecer a língua estrangeira, é imprescindível um domínio da língua portuguesa. E domínio implica não só a capacidade de utilizar a língua com eficiência, mas também a capacidade de analisar suas estruturas fonéticas, morfológicas, sintáticas e semânticas; compreender seus mecanismos de funcionamento, seu potencial expressivo, etc. Isso, (in)felizmente, requer trabalho e requer estudo. Cito outros três livros, muito úteis para compreender a que me refiro:

6. Othon Moacyr Garcia, Comunicação em Prosa Moderna. São Paulo, FGV, 2010. (várias edições anteriores)

7. Gladstone Chaves de Melo, Ensaio de Estilística da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Livraria Editora Padrão, 1976. (Esgotado, encontrável apenas em sebos. Mesmo se for caro, vale o quanto custa!)

8. Adriano da Gama Kury, Novas Lições de Análise Sintática. São Paulo, Ática, 2003.

Os três são livros de estudo que requerem certa perseverança e prática. O do Kury e o do Othon Garcia têm exercícios de fixação. Não desdenhem do livro de análise sintática; para quem almeja ser tradutor saber sintaxe é ter em mãos uma ferramenta de trabalho.

Quanto às obras de referência, dou toda ênfase a:

9. Agenor Soares dos Santos, Guia Prático da Tradução Inglesa. São Paulo, Elsevier, 2007.

Apesar do título, trata-se de um dicionário dedicado a falsos cognatos e outras armadilhas da língua inglesa. Ao final, dou uma lista de obras complementares que podem ser igualmente úteis.

***

Antonio Fernando Borges escreveu um livro chamado Em Busca da Prosa Perdida, que contém lições preciosas. Entre outras, num de seus exercícios ele nos manda escolher determinados autores e imitá-los. Ele sugere, por exemplo, que se leia uma série de crônicas de Nélson Rodrigues e depois se escreva uma crônica imitando o Nélson. Ler e imitar, ler e imitar. Vários autores. Ao final, este exercício acabará por nos tornar leitores mais atentos, de modo a perceber certas constâncias de estilo nos autores que lemos. Menciono tudo isso porque:

Para praticar, podemos imitar o estilo de um autor que escreve na nossa própria língua como exercício escolar;

Ao traduzir, devemos imitar o estilo de um autor que escreve numa língua diferente da nossa como dever de ofício.

É claro, nessa fase da imitação, é bom que se escolham livros de diferentes gêneros e, principalmente, que se leiam livros de autores brasileiros e obras traduzidas. Um exercício curiosíssimo, por exemplo, é ler Alice no País das Maravilhas, no original e nas diferentes edições brasileiras (Cosac, Zahar), para ver como certos problemas foram resolvidos. Minha maior recomendação é que, durante algum tempo, haja dedicação aos aspectos formais do texto (escolha lexical, construções sintáticas...), até que se saiba bem, por exemplo, quando cabe uma subordinada concessiva e quando cabe uma adversativa (o Othon exemplifica bem a diferença). Ao lidar com textos, descobrimos a utilidade daquelas aulas de análise sintática que às vezes nos entediavam. Identificar a oração principal e as subordinadas passa a ser tão importante quanto apreender o conteúdo do que está sendo dito. Mais do que isso: em muitos casos, é condição para apreender o que está sendo dito. E, com isso, chego ao último ponto que julgo recomendável: estude latim. Uma vez que, em latim, as funções sintáticas são marcadas morfologicamente e a ordem das palavras é mais ou menos livre, é imprescindível que se faça análise sintática de cada sentença, sem o que simplesmente não se pode compreender o que está sendo dito. Ora, este é o treinamento perfeito para a aquisição do hábito de analisar sintaticamente os textos no mesmo ato em que se lê. Fácil não é; mas é possível.



Bibliografia sugerida


Obras de estudo


Antonio Albalat, A Arte de Escrever em 20 lições. (Só se encontra em sebos!)

Idem, A Formação do Estilo pela Assimilação dos Autores. (Idem – são livros velhos e preciosos. Affonso Romano de Santana disse que foram estes livros do Albalat que fizeram dele um escritor!)

Francine Prose, Para Ler como um Escritor. Trad. Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro, Zahar, 2008.

Rodrigues Lapa, Estilística da Língua Portuguesa. São Paulo, Martins Editora, 1998.



Obras de referência


Domingos Paschoal Cegalla, Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Lexikon, 2009.

Antonio Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Lexikon, 2010.

Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, Dicionário Analógico da Língua Portuguesa – Ideias Afins. Rio de Janeiro, Lexikon, 2010.

Fancisco Fernandes, Dicionário de Sinônimos e Antônimos da Língua Portuguesa. Edição revista e ampliada por Celso Pedro Luft. São Paulo, Globo, 2002.

Antonio Carlos do Amaral Azevedo, Dicionário de Nomes, Termos e Conceitos Históricos. Rio de Janeiro, Lexikon, 2012.

Celso Pedro Luft, Dicionário Prático de Regência Nominal. São Paulo, Ática, 2009.

Celso Pedro Luft, Dicionário Prático de Regência Verbal. São Paulo, Ática, 2009.

Denis Huisman, Dicionário dos Filósofos. São Paulo, Martins Fontes, 2001.

Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia. São Paulo, WWF Martins Fontes, 2012.

J. Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, 4 vols. São Paulo, Edições Loyola, 2001.